Pra viajar no cosmos não precisa gasolina!

Pra viajar no cosmos não precisa gasolina! Então…Já tinha acontecido o comentado show Deu pra ti anos 70 e o Nei havia feito algumas apresentações na faculdade de Arquitetura da UFRGS (algumas junto com Gelson Oliveira) estávamos em 1981. A rádio Bandeirantes FM estava no ar há poucos meses e já começava a receber fitas independentes de músicos e bandas gaúchas. E foi assim que conheci pessoalmente o tal Nei Lisboa, natural de Caxias do Sul, que chegou até o estúdio da José Bonifácio, com seus longos cabelos amarrados e uma fita de rolo Basf numa sacola de plástico. A produtora Dedé Ribeiro que foi namorada do Nei, costumava dizer que naquela sacola estavam todas as coisas que interessavam ao Nei. Tanto que quando eles brigavam, ele pegava a sacola e ia embora. Ali estava toda a sua vida. A fita continha um blues, parceria do Nei com Augusto Licks, que tinha sido gravado há pouco no estúdio da ISAEC em Porto Alegre. A música já tinha sido apresentada no Festival Musipuc, no tempo em que a PUC fazia festivais de música e quando cantava o verso: “o povo passa fome, o povo quer comer”, Nei jogava pão para a platéia. E a galera comia o pão numa boa. Pra viajar no cosmos… entrou direto na programação e os ouvintes não paravam de pedir pra ouvir de novo. Agora Nei Lisboa começava a fazer sucesso no rádio.

ACERVO PESSOAL DEDÉ RIBEIRO
ACERVO PESSOAL DEDÉ RIBEIRO

Um dos nossos objetivos com a então estreante emissora estava sendo alcançado. No ano seguinte, 82, Nei fazia o primeiro show com uma banda e uma boa produção/divulgação no Teatro Renascença. O nome do show: “Vem comigo nesse barco azul”. Antes do show, quem entrava no teatro, ficava ouvindo a Perla cantando a música que dava titulo ao show. A irreverência começava a ser uma das marcas registradas do cara.

O primeiro disco do Nei foi lançado nessa época, de forma independente, através da venda de bônus. O trabalho do Nei já estava tão vinculado à Rádio Bandeirantes que na hora em que o disco chegou da prensagem foi levado direto ao estúdio e colocado no ar. Naquele mesmo dia viajei para o Rio com o disco do Nei em baixo do braço pois saí direto da rádio para o aeroporto e ao meu lado, no avião, um ouvinte da rádio me dizia: “eu estava ouvindo agora há pouco o lançamento do disco na rádio… eu queria levar o disco porque estou de mudança para o Rio”… Veio então, o show de lançamento do disco. Salão de Atos da UFRGS lotado. Após o show fui cumprimentar o Nei no camarim e ele me surpreendeu dizendo: “já fiz o disco e o show de lançamento, agora vou largar tudo e fazer outra coisa”. Depois constatei que as surpresas com o Nei estavam apenas começando. Um domingo, já em 1983, encontro com o Nei num bar do Bom Fim . Ele me falava que apesar de tudo o que tinha feito até então, estava decepcionado com as suas possibilidades na cena musical porto-alegrense. Era o marasmo cultural gaúcho, a falta de grana e essas coisas que desestimulam tanta gente.

FERNANDO COUTINHO/REPRODUÇÃO/JC
FERNANDO COUTINHO/REPRODUÇÃO/JC

Nei sugeriu que fôssemos até a casa do seu parceiro Augusto Licks, que ficava ali perto, na rua Joaquim Nabuco. Lá chegando, mais uma cerveja e começou a rolar o som. Nei cantou várias músicas novas e uma especialmente me chamou a atenção. “Porque é que você não se cuida meu bem, saúde no amor não faz mal a ninguém”. Senti na hora a possibilidade de ter um hit na rádio, mas faltava uma coisa importante: dinheiro para custear a gravação. Foi quando entrou em cena o dono da casa que sempre foi ligado em aparelhagens e instrumentos, colocando à disposição um gravador TEAC, cassete de 4 canais e um microfone Shure. “O Bruce Springsteen gravou um disco, o Nebraska, num gravador desses” comentou Augusto. Em seguida eles estavam gravando, com dois violões Mônica Tricomônica uma música bem humorada sobre um surto de tricomona (doença sexualmente transmissível) que andava pela cidade. Naquela época ainda não se falava em AIDS, é bom lembrar! Saí do apartamento do Augusto Licks com a fita no bolso. No dia seguinte, na rádio (nessa altura já estávamos na Ipanema), a história se repetia. Rodei a música por volta das 14 horas. Até o final do horário, 19 horas, recebi dez pedidos pra rodar de novo. Poucas músicas novas provocam uma reação dessas. E assim nascia mais um sucesso do Nei Lisboa, da forma mais alternativa e independente possível. Mesmo assim, Nei continuava afirmando que estava pensando em largar tudo porque não rolava show e o mercado para o músico gaúcho não havia melhorado desde que lançou o primeiro disco. De novo o bar do Beto (que o Nelson Coelho de Castro costumava chamar de escritório, porque muita coisa era decidida lá).

Falei pro Nei que ele tinha que fazer um show urgente pois a música Mônica Tricomônica era um hit na rádio e ele me disse: “então produz um show que eu vou lá e toco”. Eu não havia feito produção de nenhum show até então, mas gostei da idéia e no dia seguinte fui até o Teatro Renascença. Havia uma terça feira livre e pedi que agendassem um show do Nei Lisboa. Chegou o dia. Faltavam uns 15 minutos para o início do show e os ingressos esgotaram na bilheteria e havia muita gente querendo entrar, o que gerou uma pressão do público nas portas de vidro do teatro. A direção do Renascença preocupada com a reação do público sugeriu que se fizesse outra sessão a meia noite. Fui até o camarim onde o Nei dedilhava o violão tomando um gole de conhaque. Falei pra ele: segura as tuas energias porque vão ser dois shows, teremos uma sessão extra à meia noite. Nei perguntou: “é sério? Bah, du caralho!” Comemoramos o sucesso do show no Restaurante Lugar Comum até a madrugada.

Em julho de 1988 um acidente deixaria marcas. Recebo um telefonema do Giba Assis Brasil falando que deveríamos ir para o apartamento do Nei imediatamene porque tinha acontecido um acidente grave. Ficamos sentados na sala do apto. Nei com o rosto desfigurado conversava sem parar, mas ninguém ousava falar no acidente. Numa viagem para a serra, o carro dirigido por Nei saiu da estrada e foi de encontro às rochas da perigosa rodovia em Nova Petrópolis. Ele, a amiga Viviane Gil e as duas crianças que estavam no carro ficaram feridos, mas a namorada Leila Espelet, morreu. Para ela Nei faria depois a música Teletransporte n 3. A vida continua, diz o ditado popular. Nei trabalhou com vários músicos, fez muitos shows, foi contratado pela EMI-Odeon, fez vários discos, morou em São Paulo, tocou com a Ospa, gravou com Engenheiros do Hawaii, saiu da EMI-Odeon, escreveu um livro e chegou aos dez anos de carreira convencido que era muito tarde para mudar de estrada. Dessa forma, Nei Lisboa atravessou os anos 80 e seu nome é sempre garantia de teatro lotado. Sobre isso ele brinca: “qualquer dia viro estátua na Redenção”. Mesmo tendo morado em outros lugares, parece que o Nei nunca saiu do Bom Fim.

De todas as grandes frases ou versos do Nei, tem um que marcou definitivamente uma geração localizada aqui, ao sul da América do Sul. Pra viajar no cosmos não precisa gasolina. É Lei. Todas as viagens estão aí. Todas as rodas de som na beira da praia, todos os baseados do fumódromo, todas as bandeiras e estrelas estão aí, nessa frase. A música que foi assim batizada, teve duas gravações. Uma delas é a que está gravada no primeiro disco do Nei. A outra, que na verdade foi a primeira, é a demo da ISAEC, que fez sucesso na Bandeirantes. Um dia procurei aquela primeira gravação, que é considerada muito melhor do que a do disco e não encontrei nos arquivos da Rádio Ipanema. Liguei para o Nei e ele também não tinha mais. Restaram algumas cópias em cassete. Consegui uma com o Giba (Assis Brasil), que ele guarda e mostra com orgulho, como uma de suas relíquias, junto com discos do Raul Seixas e do Pink Floyd.


Capítulo do livro Prezados ouvintes sobre o Nei – Pra viajar no cosmos.

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